Merval Pereira, O Globo, 04/09/2011
Certamente não foi por acaso que o Ministro Gilberto Carvalho, percebido como o representante de Lula no ministério de Dilma, passou a dizer nos últimos dias que o PT não deve cultivar um saudosismo do ex-presidente, e sim trabalhar para criar as condições para que a presidente possa se candidatar à reeleição em 2014.
Logo ele, que avisava à oposição que Lula está no banco de reservas pronto para entrar em campo, e que não perdia a oportunidade de ressaltar a saudade que tem do ex-presidente.
Tudo indica que os movimentos que a presidente Dilma vem fazendo, reorganizando a maneira de lidar não apenas com os demais partidos da base aliada, mas, sobretudo, com o PT, está sinalizando uma determinação de alterar certos relacionamentos mais forte do que supunham seus companheiros de empreitada política.
O documento petista a ser divulgado nesse IV Congresso tem nas entrelinhas, apesar do apoio explícito ao governo Dilma, críticas à sua iniciativa de barrar comportamentos políticos desviados, sob a alegação de que os apoios que vem recebendo de amplos setores da sociedade e da “imprensa burguesa” nada mais são do que tentativas de intrigá-la com seu antecessor, que ficaria marcado como conivente com a corrupção e os malfeitos.
Na verdade, ao demarcar as ações do governo Dilma e reorientar suas prioridades, recolocando entre elas o que chamam de “controle social da mídia”, o PT tenta retomar as rédeas de um governo que considerava seu e que, aos poucos, vai se mostrando mais independente do que poderiam supor setores petistas empenhados em tutelar a presidente, principalmente aqueles ligados ao ex-ministro José Dirceu, que classificou ainda na campanha presidencial o futuro governo Dilma como sendo o verdadeiro governo do PT, já que Lula era maior que o PT e Dilma dependeria do partido para sua ação política.
O exercício da independência política inesperada tem sido demonstrado nos episódios da “faxina”, que não teria sido suspensa, segundo pessoas próximas a ela, mas obedeceria a uma nova estratégia, de menos confronto para ter mais eficiência.
A maneira como está tratando o orçamento do Judiciário é outro exemplo de como a presidente Dilma é capaz de confrontar interesses quando os considera alheios ao que identifica como interesse público.
No final do texto que enviou ao Congresso como adendo ao orçamento, Dilma deixa claro que não incluiu as propostas do Judiciário que têm um impacto de R$ 7,7 bilhões por que elas prejudicariam “a efetiva implementação de políticas públicas essenciais como as da saúde, educação e redução da miséria”.
Diz que somente as encaminha “em respeito ao princípio republicano da separação dos Poderes e cumprindo dever constitucional”, mas deixou para o Congresso definir o que será cortado para que a verba do Judiciário seja aprovada.
É claro que expor o Poder Judiciário ao crivo da opinião pública da maneira como fez é sinal de arrogância que muito já a prejudicou nos relacionamentos políticos, mas demonstra também que ela está disposta a usar até o limite seus poderes constitucionais para criar constrangimentos aos setores que considera estarem constrangendo sua ação presidencial, sejam eles políticos, o Banco Central ou o Judiciário.
O sociólogo Luiz Werneck Vianna, em seu recente livro “A modernização sem o moderno”, lamenta que o governo Lula não tenha aproveitado a conjuntura favorável para avançar nas relações políticas. “(…) apesar dessa conjunção favorável das circunstâncias para a renovação da política, o governo Lula, ao invés de interpelar criticamente a nossa experiência republicana, trouxe de volta, por ensaio e erro, alguns de seus aspectos mais recessivos.
(…) mas, as opções feitas, aprofundadas particularmente no segundo mandato, redundaram na solução imprevista de ele se apresentar como contínuo aos ciclos anteriores de nossa modernização, todos, reconhecidamente, levados a cabo por políticas de um Estado disposto assimetricamente quanto à sociedade”
(…) “Comprometeu-se, em nome de um pragmatismo que não apresenta suas razões, o moderno à modernização”, escreve o sociólogo.
Pois ele, em recente artigo, identifica nos movimentos do governo Dilma de aproximação com novas forças políticas uma possibilidade de se chegar à modernidade.
De fato, há indicações de sobra de que a presidente Dilma está buscando um caminho próprio dentro do presidencialismo de coalizão que submete os governos, a pretexto da governabilidade, a constrangimentos que podem ser inaceitáveis para quem não se satisfaz apenas com o pragmatismo da política.
Ou para quem quer marcar sua passagem pela presidência não como uma mera tutelada.
Certas atitudes da presidente Dilma podem estar surpreendendo os aliados, acostumados a uma atitude mais condescendente do ex-presidente Lula que, na definição recente do governador da Bahia Jacques Wagner, é mais “tolerante” e “palanqueiro”, enquanto Dilma é mais “dura” e “gestora”.
Desse embate entre maneiras diferentes de gerir o poder político petista, que não significa discordâncias de conteúdo, mas de forma, pode surgir um rumo novo para a eleição de 2014.
Se o governo Dilma superar os problemas políticos que a crise econômica internacional já está colocando em seu caminho, com a necessidade de conter gastos correntes que ela mesma dizia que representavam “vida”, poderá se firmar como liderança política.
Mesmo nesse caso, terá que ser franca favorita para se impor ao PT como candidata natural à reeleição e manter a aliança política em torno de si.
Caso a situação não lhe seja tão favorável, é possível que a aliança política se desmorone e surjam diversos postulantes à sua sucessão, dentro do PT e nos principais partidos, como o PMDB e o PSB.
Ou mesmo que novas alianças sejam formadas entre a oposição e partidos hoje na base aliada. Toda essa movimentação, no entanto, depende de uma variável: a decisão de Lula de concorrer.
O que pode ser visto como a salvação do PT ou também como um empecilho a que as lideranças da base aliada – como os governadores petistas Jacques Wagner, Tarso Genro, Marcelo Deda, o líder do PSB Eduardo Campos – deem curso ao seu destino político.