Maurício Costa Romão, Ph.D. em economia, é consultor da Contexto Estratégias Política e de Mercado, e do Instituto de Pesquisas Maurício de Nassau. mauricio-romao@uol.com.br
Em recente proposta de reforma eleitoral* foi aventada a possibilidade de que, face às dificuldades do Parlamento absorver a idéia de experimentar um sistema eleitoral de eleição de parlamentares estranho à cultura e tradição do país (voto majoritário, ou proporcional de lista pré-ordenada), a saída pragmática seria aperfeiçoaro modelo atual, em vigência no Brasil desde 1945, eliminando suas grandes distorções:
(1) as coligações partidárias e (2) a influência eleitoral dos puxadores de voto, e (3) uma incoerência do sistema, que proíbe os partidos que não alcançam o quociente eleitoral de participar da distribuição de sobras de votos.
É sobre o ponto (3) que este texto discorre com mais acuidade.
O princípio básico que preside o sistema proporcional consiste em assegurar representação parlamentar a mais exata possível das várias forças políticas existentes na sociedade, de sorte que haja relativa equivalência entre as proporções de votos e de mandatos obtidos por cada partido.
Esses alicerces conceituais do sistema dão sustentáculo à participação de siglas menores no processo eleitoral, com perspectivas de almejar representação parlamentar.
Entretanto, o modelo em vigência adota uma draconiana cláusula de barreira ou de exclusão, via quociente eleitoral, que impede de os partidos que não tenham tido votação suficiente para ultrapassar esse quociente disputem as sobras de votos. Em geral são exatamente as siglas pequenas que ficam excluídas (em 2010, no Rio Grande do Sul, o PSOL ficou relativamente próximo de atingir o quociente eleitoral (QE) para deputado federal, mas não o fez e, como conseqüência, Luciana Genro, parlamentar do partido, que teve 129.501 votos, nona maior votação do estado, não se reelegeu).
Na presente sugestão, ao contrário, tais agremiações, ainda que não logrem votação suficiente para sobrepujar o QE, podem entrar na disputa pela repartição das sobras, através das sucessivas rodadas de cálculo das maiores médias, propiciando-lhes perspectivas de assunção ao Parlamento.
Alguns exemplos concretos ajudarão a ilustrar essa questão. Na eleição de 2008 para vereador em Jaboatão dos Guararapes o QE foi de 14.583 votos válidos. A coligação PMDB/PPS obteve 14.411 votos e, portanto, não atingiu o QE, não obstante haja chegado bem próximo de fazê-lo. Pelo modelo atual a coligação está alijada da eleição e fica fora da repartição das vagas a serem alocadas, por sobras de votos. Naquele pleito foram distribuídas por sobras 6 vagas das 21 do Parlamento.
Fosse permitido àquela coligação participar da disputa de sobras, mesmo não atingindo o QE, e ela teria elegido um vereador, ficando com uma das 6 vagas, já que no processo de averiguação das maiores médias (método D’Hondt)** a maior média resultante das 6 rodadas de cálculo teria sido a da mencionada aliança.
Por outro lado, os partidos e coligações cuja votação ficou abaixo da registrada pela coligação PMDB/PPS não teriam a menor chance de também ascender ao Parlamento, já que suas votações foram muito pequenas (a mais próxima foi a do PDT com 5.543 votos).
Ainda sobre eleição para vereador em 2008, desta feita no Recife, o PT do B teve 20.333 votos válidos, chegando perto do QE de 23.010 votos. Se pudesse ter participado da distribuição das sobras, sua média dar-lhe-ia direito a uma das 7 vagas repartidas, num total de 37. O segundo partido cuja votação ficou mais perto do QE foi o PSOL, que obteve 10.480 votos, mas aí sem nenhuma chance de conquistar vaga por conta de sua baixa média.
Quanto mais próximo do QE for o número de votos válidos obtido pelo partido ou coligação que não o atingiu, mais possibilidade tem desse partido ou coligação de conquistar uma vaga por sobra. Isso porque a sistemática de cálculo das médias pela fórmula D’Hondt premia com cadeiras adicionais exatamente aqueles partidos ou coligações que têm as maiores médias, ou seja, aquelas médias que mais se aproximam do QE.
Mas a questão de maior ou menor proximidade do QE é relativa. Para saber se um partido ou coligação, que não atingiu o QE, pode conquistar uma vaga por partição de sobras é necessário proceder-se a várias rodadas de cálculo, tantas quantas forem as vagas a distribuir.
Por exemplo, na eleição para deputado estadual em 2010, em Pernambuco, a coligação PTN/PRTB teve 83.125 votos, quantidade de votos relativamente próxima do QE, que foi de 91.824 votos. Naquele pleito, das 49 vagas em disputa havia 5 a distribuir por sobras de votos. Mesmo que a legislação permitisse a partição de sobras extensiva aos partidos que não alcançaram o QE, ainda assim a coligação PTN/PRTB não obteria uma vaga, posto que sua média de votos ficaria na sexta colocação entre as mais altas.
Depreende-se deste último exemplo que a abertura para que todas as agremiações participem das sucessivas rodadas de distribuição de sobras eleitorais está longe de garantir ascensão ao Parlamento daquelas situadas abaixo do QE. Requer-se que elas tenham tido votação relativamente expressiva, a ponto de situar-se no entorno do QE. Isso faria com que suas médias passassem a ser competitivas com as médias do bloco de cima (siglas que ultrapassaram o QE). Ainda assim, só o processo de cálculo sucessivo das maiores médias é que vai determinar se os partidos de votação aquém do QE, embora próxima dele, serão contemplados com vagas sobrantes.
Em resumo, a alteração da legislação permitindo que siglas que não atinjam o QE possam participar das sobras de votos, mais do que uma justiça para partidos que tenham alguma densidade eleitoral, é um retorno aos princípios básicos do modelo proporcional de partilhar a representação do Parlamento entre todos os segmentos da sociedade, representados pelos partidos políticos.
Mais ainda. Com a possibilidade do fim das coligações proporcionais, as siglas pequenas, incluindo aquelas mais ideológicas, tendem a desaparecer ou a permanecer no sistema como meros figurantes, sem nenhuma possibilidade de assunção ao Parlamento.
A abertura para que tais siglas possam disputar as sobras eleitorais minimizaria o fim das coligações, posto que aquelas agremiações de alguma densidade de votos (vale dizer, de relativo apoiamento de grupos da sociedade) teriam condições de almejar representação parlamentar e, portanto, ficariam incentivadas a solidificar sua estrutura partidária e angariar mais adeptos.